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13 jan 2011

Resposta aos comentários

Recentemente, os assunto do acidente de Bernardo Collares tem dominado as listas de discussão e muitas pessoas têm se mostrado indignadas com a decisão de não tentar um resgate do escalador. A maioria parece não ter conhecimento do universo da escalada, e não perceber as reais razões do resgate ter sido deixado de lado. Algumas pessoas tem até mesmo atacado a comunidade de escaladores achando-nos desunidos e acomodados. Eu não tenho tantos argumentos para justificar a falta de resgate, mas consigo entender, com o que eu conheço, que um resgate seria praticamente impossível. Mas para responder de vez esse tipo de comentário, reproduzo aqui o email do escalador Mauricio Clauzet, na lista da HangOn, deixando de forma clara o porque de não haver resgate.

Bom, eu também até agora não havia escrito nada, pois como o Felipe, é muito triste escrever sobre isso. Chega a ser difícil escrever.

Primeiro, respeito muito a vontade da família de resgatar o corpo, pois não sei bem porquê, isso acaba sendo um conforto, não sei.

Por outro lado, vejo que na maioria das vezes que a imprensa e até alguns colegas escaladores falam de “um resgate”, mas é visível que não tem um completo entendimento do ambiente lá, das condições e da sua dinâmica.

Já estive lá, conheço a área, e além de outras escaladas/tentativas em agulhas menores e menos comprometidas, em 2006 fiz com a Roberta e com o Dalinho uma tentativa no Fitz, pela Franco-Argentina (em tese a mais curta e mais fácil das vias) e não fomos longe, nem além da Brecha de los Italianos. Em ano anterior, a Rober escalou entre 60 e 75% da Afanassief com Jose Peres e posteriormente o Ed o Val e mais um argentino repetiram em 2006, temporada que eu estava lá, essa via na íntegra, depois de mais de 20 anos sem repetição desde a sua conquista. Já vi muitas fotos da via e conversei com eles, então apesar de nunca ter ido lá propriamente, tenho uma boa idéia da via e do seu acesso. Seu acesso já não é simples, e é longe. É a via mais longa do Fitz, vertical e nela predomina rocha e há pouca escalada em gelo.

Primeiro, a mais de 3000m na Patagônia, e depois de uma tempestade, mesmo para uma pessoa gozando de total saúde seria difícil sobreviver a mais de 2 noites exposto na parede. Assim, eu não acredito que o Bernardo esteja ainda vivo esperando por um resgate. A Kika é instrutora da NOLS e assim já teve que fazer no mínimo 2 cursos, o Wildernes First Responder e o Wilderness First Atendant, e eu já fiz o Wilderness First Responder, o mais básico, que é um curso excelente. O First Responder é mais aprofundado ainda e com carga horária maior, e assim, quando a Kika fala de bacia quebrada e hemorragia interna eu estou seguro de que ela sabe do que está falando. Nessa condição, sobreviver 2 noites lá já seria um milagre, quanto mais uma semana. Assim, eu considero que não há nem a mais remota possibilidade do Bernardo estar lá com vida.

Partindo desse pressuposto, considero totalmente irracional pensar em um resgate do corpo em algum lugar da parede do Fitz. Recentemente, quando estive no Ama Dablam, um helicóptero foi resgatar 2 escaladores presos na parede e se estabacou, morreram os 2 tripulantes mais um dos escaladores. E além das pessoas mortas, agora está lá um monte de lixo na encosta/gelo da montanha, inclusive com combustível e outros materiais tóxicos. Os 2 únicos piloto e engenheiro do Nepal, que tinham sido treinados na Suíça para resgate em montanha, morreram e assim o Nepal também perdeu um enorme capital humano. Tirar alguém da parede do Fitz de helicóptero é tão ou mais perigoso que ir lá escalar. Ir lá escalar por sua escolha é uma coisa, ir lá em uma missão atrás de um corpo é outra.

O Fitz é vertical e açoitado por ventos fortíssimos e em rajadas, criando todo tipo de confusão, zonas de alta e baixa pressão, rotores e vortex. Eu considero suícidio chegar de helicóptero perto da parede lá a não ser que não haja vento nenhum, algo praticamente impossível por lá como sabemos. Mesmo em uma janela boa para escalar, não acho que seja boa o suficiente para chegar de helicóptero na parede com um resgatista pendurado por cabo embaixo. Apesar de não ter o problema da altitude do Ama Dablam, considero o Fitz muito mais arriscado. Assim, não vejo o menor sentido em se gerar toda essa revolta por não quererem ir lá de helicóptero resgatar o corpo. Eu apoio os resgatistas que não querem ir lá. Entendo que isso seja difícil de aceitar, principalmente para os familiares próximos, mas é a realidade da situação.

A única coisa que poderia ter feito a diferença acredito que seria eles terem um rádio HT VHF e conseguissem comunicar o Parque assim que ocorreu o acidente, mas isso também poderia ser um tiro pela culatra, pois nesse caso a Kika poderia ter ficado lá esperando um resgate que eventualmente não chegaria, e aí seriam 2 e não 1. Ademais, nas escaladas Patagônicas extremas como essa, cada grama de peso é de se avaliar, e eu também não teria levado um rádio, mesmo se tivesse, para escalar a Afanassief.

Nós escaladores, temos que entender muito bem o significado da palavra comprometimento. Existem escaladas onde realmente estamos “pondo o nosso na reta”, e se algo der errado, as consequencias podem ser as piores. O complicado, são casos como o das expedições comerciais ao Everest e cia, onde os “clientes” tem uma falsa sensação de segurança e não conseguem ver a exposição aos riscos e o comprometimento. Tanto o Berna como a Kika tinham consciência de onde estavam se metendo. Escalar lá é realmente se projetar profundamente no remoto, no wild, no never never land. A sensação é que você está longe, muuuuito longe, e já considero um milagre a Kika ter conseguido descer de lá sozinha. A Kika é uma puta guerreira, quase inacreditável. Qualquer um que questione a decisão dela de descer ao invés de ficar, de duas uma, ou não tem a menor noção de onde eles estavam e das condições, ou é uma besta, e em ambos casos deveria ficar quieto. A Kika merece todo nosso respeito e acima de tudo nosso apoio, pois se doi na gente aqui e estamos tristes, eu não consigo nem imaginar a condição emocional dela depois de todo esse processo. Processo mesmo, pois não foi só tomar as decisões, descer sozinha e chegar no chão com um toco de corda, voltar tudo… todo esse pós chegar em Chaltén também não está sendo fácil. Temos que dar todo nosso apoio e carinho a ela.
Assim, aproveito pra dizer, que se um dia eu ficar pela montanha, me deixem por lá por favor.

Tenho certeza que o Bernardo ao entender que ia ficar por lá, passou para o lado de Lá em Paz, com a tranquilidade que só uma pessoa com o seu desapego e tendo vivido tanto a vida como ele conseguiria ter nessa hora.

Como já dito, o melhor que temos a fazer é lutar pro trabalho/legado do Berna não se perca, que cada um de nós tenha a vitalidade e a energia que ele punha na sua própria vida. Que seja uma inspiração de trabalho pelo montanhismo e também como pessoa e brother, que é tão querido não é a toa.

Buenas olas

ToNTo

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Postado por Neudson em : Texto , trackback
Tags:Bernarndo Collares, Fitz Roy, Kika Bradford, Mauricio Clauzet

Comentários»

1. Esdras - 13 jan 2011

Valeu por compartilhar o texto, muito bom e com a argumentação mais coerente que eu vi até agora.

2. Tweets that mention Desce daí, doido! » Resposta aos comentários -- Topsy.com - 14 jan 2011

[...] This post was mentioned on Twitter by Neudson Aquino. Neudson Aquino said: RT @descedaidoido: Resposta aos comentários http://nblo.gs/cWR7P [...]

3. Izabela Tavares - 10 mai 2011

O post acima é de 13 de janeiro de 2011.

Hoje, dia 10 de maio de 2011, já sabemos que, em seu depoimento no processo judicial que foi aberto na Argentina, a Kika disse que não examinou o corpo de Bernardo, nem afastou suas roupas. Não podia, portanto, determinar que ele tinha fraturado a bacia, nem que ele tinha uma hemorragia interna.

Hoje, também já sabemos que outros escaladores estiveram onde Kika disse que deixou Bernardo (incapaz de se movimentar, disse ela). Sacos de comida foram achados abertos e o corpo de Bernardo não foi encontrado.

Ora, Kika! Existe alguma coisa ESTRANHA aí, não é? Qualquer cego pode ver. Deus me livre de escalar ao seu lado.